Pensamento em Ziguezague

Junqueira, Ivan de Almeida – textos e fotos

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Interpretações Circunstanciais da Percepção

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Interpretações Circunstanciais da Percepção

Ivan de Almeida
agosto de 2016

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As interpretações de nossa percepção são isso,são interpretações que são circunstanciais, pois a mesma cor ou a mesma sombra são tidas como aquela cor ou aquela sombra dependendo do contexto, das luzes do entorno, etc, e a audição é completamente seletiva, nós não escutamos (raramente escutamos) nossos ruídos corpóreos como o batimento do coração, vemos um mundo estável quando também, pelo batimento cardíaco, o olho pulsa. É possível, em circunstâncias especiais, em treinamento especial, ver a pulsação.

Outras civilizações distinguiam as cores diferentemente, isto citado pelo Merleau-Ponty em seu interessantíssimo livro Fenomenologia da Percepção falando dos índios da América. As crianças não distinguem cores, melhor dizendo, distinguem mundo multi-variado como o nosso, mas não sabem distinguir uma cor da outra. Não é chute. Quando minha filha crescia novinha nós perguntávamos “qual cor’ e foi evidente em certas ocasiões que ela não distinguia. Aliás, nela distingui umas três características de formação que não sabia, pois no mundo normal são fenômenos invisíveis. Por exemplo, em uma das ultrassonografias ela apareceu fazendo abdominais incessantes. Estranhei, falei com o médico que nos atendia, ele disse que aquilo é uma etapa das gestações, ou seja, vi coisa que a vida comum não mostra, que o controle muscular começa ainda no útero na cessação das pulsações corpóreas (pulsação é uma característica fundamental celular). Depois, quando nasceu, ainda na maternidade agarrou a mãe, jogou a perna por cima da mãe para “capturá-la”. Hoje compreendo que a vida uterina transmitiu a ela a dedicação da mãe ao primeiro filho, não uma transmissão racional, mas animal, e ela nascendo tratou de se defender “capturando” a mãe.

A questão do cognitivismo não é uma questão errada ou maldita. O mesmo fenômeno pode ser decomposto em suas partes, todas as coisas têm muitos lados, então o jogo dos significados e orientação cognitiva é uma esfera de análise, a biologia específica outra, e assim vai. No cérebro há uma coisa que é difícil de lidar porque ele se modela pelo uso, então as ideias, o pensamento repetido, modela um tanto cada neurônio e suas extensões de ligação..

A questão do entendimento do mundo é em grande grau arbitrária. Nada É, tudo é parte, tudo é situacional. A questão aí não é buscar a verdade, pois seria querer que o oceano caiba numa panela. A questão é buscar o conhecimento útil para a circunstância. O homem não saberá nunca nada do que de fato é, mas sim, saberá coisas que usará para viver.

Written by Ivan de Almeida

agosto 25, 2016 at 1:37 pm

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O homem e o pensamento

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O homem e o Pensamento

Ivan de Almeida
agosto de 2016

 

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a construção de si mesmo

A questão é que se comete um erro quando se lida com o assunto. Toma-se, na maioria das vezes, o raciocínio humano como coisa inata. Mas o inato do homem é apenas sua animalidade. O que realmente há no homem é um treinamento, um treinamento em… ser homem (o que chamamos de ser homem). O bebê quando nasce ainda não é. Mas aprende a ser pois os comportamentos são a ele passados, desde a mais simples convivência com outros homens treinados, educados.

Ao longos dos milênios, a corrente de transmissão se mantém. Muda a cultura, mas o homem é, como o conhecemos, um animal treinado, treinado até no pensamento. Observem que os pensamentos são pensamentos em palavras, e palavras são adquiridas na infância, e palavras variam pelo mundo como a língua varia..Nós não pensamos em “coisas”, mas em geral em palavras, e mesmo as coisas são símbolos.

O homem não passa de um animal treinado, que se especializou em se tornar capaz de receber o treinamento. Esta é a evolução. A evolução do homem foi a capacidade de receber e transmitir o comportamento cultural humano. A cultura, aqui falada, não é o que se chamamos de cultura maior, é a cultura de convivência humana e sua comunicação, aí se sofisticando degrau a degrau até a “mente pensante”.

O homem tem dentro dele um ser social que é uma educação direta ou indireta, desde sua infância. É inseparável do cérebro. Não dá para simplificar, pois cérebro é desenvolvido (ligações) com o uso, e o uso é este, uso cultural.

Porém o homem louva e adora esse troço que é meramente ser social, e não sabe ser outra coisa. Acha que é seu eu, e de certa forma é, embora isso seja um eu social. Porque o homem social começa a ser formado no berço e evolui, então como tudo na vida, seu cérebro vai ganhando uma interface e esta interface, por sua vez, especializa o cérebro, aproveita as especializações possíveis, que é semelhante porque é semelhante o viver social.

O homem, como o conhecemos, é um homem social, ou seja, olha a si e não vê nada diferente do que foi formado socialmente. Evidentemente, em todo ser vivo há uma mistura de adquirido e nativo, mas mesmo o nativo sofre modelagens já na vida fetal particular,que não é igual quando, por exemplo, a pessoa nasce no verão e no inverno, que não é igual quando é filho de uma mãe em paz ou uma mãe nervosa e vítima de violência. Porque desde certo ponto da gestação o ambiente influencia o feto. É impossível separar o homem de sua vida fetal particular. O homem não é uma tábua branca.

Cada um de nós se formou biologicamente e culturalmente (ou vivencialmente), em um conjunto de influências mútuas, Não existe homem genérico.

Há, cada vez mais raros, casos de homens raptados por macacos (África) e quando achados, já crescidos, não aprendem mais a serem homens, são animais de biologia humana. O homem, como conhecemos, é uma mescla de modelagem mútua da biologia e da cultura (ou experiência de vida).

Written by Ivan de Almeida

agosto 25, 2016 at 2:26 am

Sobre a Percepção

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Sobre a Percepção

Ivan de Almeida
06 de maio de 2007

Vejamos. Nas coisas que são produzidas pelo ajuste de conduta das comunidades humanas ocorre uma variação de ajuste entre os indivíduos. O termo educação aqui deve ser bipartido entre educação formal -aquela adquirida nas escolas ou sob ensinamento dirigido dos pais/família- e a educação informal, que é o treinamento para a operação nos ambientes culturais (o ambiente humano é sempre cultural) que é IMPARTIDO mas não conscientemente transmitido, e que é ASSIMILADO mas sem consciência plena de sê-lo.

A mente humana nada mais é que um rebatimento especial da cultura em um sistema nervoso. Mente é uma palavra meio sem sentido, e seu único sentido razoável é servir para indicar esse rebatimento que é especial devido ao fato de ser diferente de indivíduo para indivíduo.

Sendo diferente, contudo, não é completamente diferente, pois 1) é o rebatimento da mesma cultura, apenas filtrada pela história individual; 2) é suficientemente uniforme para permitir a coordenação das diversas condutas individuais dentro de uma comunidade.

A chamada Lógica Paraconsistente, ou Lógica Fuzzy tem sido uma ferramenta de modelagem matemática mais adequada ao tratamento dessa classe de fenômenos onde não se tem sim ou não, mas uma distribuição de significância por um campo amostral. Eu, por exemplo, estou perdendo cabelos no topo da cabeça. Meus amigos podem dizer: “ivan você está careca!”, outros podem dizer que tenho cabelos (de fato sou mais não-careca que careca). Mas não há um limite preciso para a carequice. Se tabuladas as respostas poderia ser dito que eu sou não-careca para 85% das pessoas, e careca para 15% delas. Essa porcentagem expressa a significância da palavra “careca” atribuída a mim.

Os fenômenos de ajuste de conduta devem ter esse tratamento. Não existe obrigatoriedade de interpretação, mas sim uma zona de maior significância. Podemos dizer que devido ao treinamento de leitura, que é uma emergência da sociedade ocidental e que por sua vez é orgânico com outras organizações culturais que concretizam-se no mundo dos objetos (por exemplo, os sinais de trânsito ficam à direita, as placas de sinalização na maioria dos países à direita, etc). Assim, submetido um grupo de cobaias a um experimento com eye-tracker para mapear os movimentos oculares de leitura de um determinado contexto (por exemplo, uma linha inclinada), vamos ter uma distribuição da amostra, e alguns varrerão a linha como descendente e outros como ascendente. Isso cria um índice de significância para linha descendente que provavelmente será maior do que para a ascendente. Nós fotógrafos, dentro do contexto da cultura ocidental e exceto nos países da Comunidade Britânica, podemos contar que quando fizermos uma foto com uma escada naquela posição ela será entendida pela maioria como descendo e não como subindo. Será assim para todos? É claro que não.

O homem está em permanente treinamento perceptual. Sua percepção muda ao longo da sua vida, mas ele não percebe isso porque está “dentro de si”, e não nota como a percepção de hoje é distinta da do passado. Ele se vê como a percepção, então ele é sua própria percepção em declaração interna. Grande parte do trabalho desta “mente” consiste em estabilizar um mundo que não é estável. Estabilizar significa obter o mesmo significado mesmo quando o objeto cambiou. Por exemplo, olhamos uma camisa branca no sol. Depois entramos em uma sala com luz de tungstênio e olhamos a camisa branca. Nossa percepção -que é uma interpretação- nos informará que a camisa e branca e a veremos branca nas duas situações. Contudo um colorímetro que não interpreta a cena mediria uma como azulada e outra como amarela. Nossa percepção não É, ela FAZ. Ela faz de um mundo mutável algo relativamente estável e com significados estáveis.

O grande problema da Gestalt e dos gestaltistas é que trabalham a percepção como fenômeno biológico e não cultural. Eles pegam os “seres de razão”, como diria o Cassirer, e os supõem emergências da biologia, e assim lançam-se nessa busca sem sentido de tentar achar se isto é assim ou assado, quando nada é assim ou assado, tudo é interpretação.

Alguns fenomenologistas filiados indiretamente ao Gestaltismo e à fenomenologia do Husserl chegam a falar do fenômeno do “esquema corporal” que é uma “declaração mental” do corpo e que em situações de amputação sobrevive ao membro amputado, de forma que a pessoa continua a senti-lo (Merleau-Ponty, Fenomenologia da Percepção). Contudo não progridem suficientemente nisso a ponto de aceitarem que não há absolutamente percepção certa, mas meramente hábito e costume, devido ao viés fenomenológico que guarda algum ranço de realismo.

A percepção tem sido um campo pré-paradigmático ocupado fracamente pelo gestaltismo, e disputado sem denodo por abordagens neurocientíficas, etc. É terreno pantanoso, então todos têm certo medo de aventurarem-se nele. Em meu entendimento, é um campo onde é preciso considerar a quase absoluta inexistência de pontos fixos de apoio, pois precipuamente o sistema de percepção é uma emergência das interações do sistema nervoso com o ambiente, não estando determinado nem pelo sistema nervoso nem pelo ambiente somente, mas pela história de interação do individuo naquilo que nele é específico, e, da sociedade, naquilo que é ajuste de conduta. A sociedade é ambiente para o indivíduo, e se a sociedade for vista como sujeito, o indivíduo também é ambiente para ela.

Written by Ivan de Almeida

outubro 30, 2012 at 5:56 pm

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Razão e Razões

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Razão e Razões
Ivan de Almeida
31 de maio de 2002

Texto publicado originalmente na Lista Acropolis – lista Yahoo de discussão sobre filosofia e ciência- naquela época em que a frequentava

Diversas mensagens nesta lista falam da razão dando-a como coisa já
estabelecida. A maioria delas trata razão como sinônimo da Razão
Calculista, típica do período que vem do Iluminismo e parece estar
terminando em nossa época. Mas a razão sempre foi característica
humana, e esse tipo de razão, que pode ser chamado de Razão
Científica, Razão Calculista ou, estendendo um pouco a coisa, Razão
Determinista, é coisa limitada na história. O objetivo desta mensagem
é debater o conceito de razã, para evitar julgarmos as formulações
do passado como irracionais quando são tão somente governadas por
outra razão diversa daquela com a qual estamos ainda acostumados. É
ainda investigar quais as possibilidades de ação diante das
alternativas que se apresentam atualmente.

Razão é tão somente a capacidade de fazer prognóstico das
conseqüências dos atos ou dos desdobramentos de uma circunstância.
Várias são as abordagens possíveis para fazer tal prognóstico, sendo
a Razão Calculista apenas uma delas. Basicamente todas as modalidades
se estruturam consolidando a experiência humana sobre determinado
assunto, utilizando a premissa: aconteceu assim, acontecerá
novamente, se repetido o mesmo contexto. Não haveria muito a debater
sobre isso se a chamada Razão Calculista não tivesse apresentado uma
outra característica interessante, que é a de supor previsíveis
coisas sobre as quais ainda não há experiência concreta, mas apenas
uma experiência de segunda ordem traduzida pelo conhecimento
científico, principalmente aquele conhecimento conotado pela visão
legalista do universo (um universo que seria conhecível através de
suas leis, cujos exemplos maiores eram as leis da Física Clássica).
Assim, na antiguidade, a construção de cúpulas na arquitetura
reproduzia os modelos bem sucedidos, ampliando um pouco, modificando
um pouco, mas o fundamento da previsibilidade do desempenho das
cúpulas (não ruir) era tão somente a experiência das cúpulas já
construídas. A lógica era: se fosse feita igual a uma existente, não
ruiria. Essa atitude difere muitíssimo do cálculo de estruturas como
é feito desde o início da aplicação da física nas construções, pois
nesse cálculo são imaginadas estruturas nunca antes foram
construídas, e é previsto seu desempenho com base na física e na
resistência teórica dos materiais.

Porém, variando o método, ambas as formas, isto é, apoiar-se na
experiência e apoiar-se nas leis (experiência de segunda ordem),
exprimem atitudes razoáveis, coerentes com o ferramental conceitual
disponível. Ambas visam prever, e ambas, dentro de certos limites,
conseguem fazê-lo. Como a Razão Calculista aumentou
significativamente o espectro de previsibilidade, e como, em sua
construção, evidenciou-se que o modo anterior havia muitas vezes
associado circunstancias a efeitos de forma não pertinente (pela
falta de um método de verificação -o que já é outra discussão), e
ainda, como esse ganho de desempenho hipnotizou as mentalidades que
passaram a crer em um universo calculável, a palavra razão quase
tornou-se sinônimo de Razão Calculista. Assim como adotamos a
denominação Razão Calculista para aquela derivada da ciência moderna,
a razão anterior pode ser chamada de Razão Prudente, e é importante
esclarecer o porquê da escolha desse nome.

Pois a Razão Calculista, ao assumir como premissa uma calculabilidade
fundamental, foi tudo, menos prudente. Ao apossar-se do cálculo, que
corresponderia a uma natureza invisível do universo, assumia que tudo
podia ser previsto, tudo podia ser projetado, e, invariavelmente o
projetado se cumpriria. Aqui e ali uma ponte caia, posta em vibração
por ventos não considerados, mas esses acidentes eram tomados apenas
como uma falha preditiva residual, e não como um defeito fundamental
da premissa. Assim como a Razão Prudente muitas vezes associava
indevidamente causa e efeito, a Razão Calculista começa a
desmoralizar-se por várias vias. A via teórica foi o fim da ilusão do
espaço isotrópico cartesiano, com Einstein, e o fim da ilusão da
calculabilidade plena. A via prática foram as desilusões da sociedade
com os efeitos da aplicação da ciência, feita de forma imprudente, na
maneira de viver, seja a poluição, sejam os riscos invisíveis das
novas tecnologias, seja a guerra científica ou, ainda, sejam as
formulações sociais científicas, Comunismo e Nazismo, que mostraram
suas faces bárbaras mesmo quando moviam-se por objetivos nobres.

Não é por acaso que os monstros do passado, bichos-papões, etc, foram
substituídos no imaginário por criações de laboratório, Parques de
Dinossauros, onde a manipulação imprudente da ciência causa o horror.
Não é por acaso que os freios ao desenvolvimento da ciência sejam
cada vez mais freios éticos, e que tal meditação ética tenha
substituído a confiança irrestrita no progresso científico. Não é
apenas, hoje sabemos, haver resíduos mal calculados por ignorância,
mas sim uma admissão de uma incalculabilidade básica diante de
sistemas muitíssimo mais imbricados e complexos do que supunha o
devaneio calculista. De certa forma somos remetidos novamente à Razão
Prudente, somente que agora dispondo de toda a mecânica calculista,
da qual não abrimos mão para aquilo onde sua aplicação é própria. Tal
mecânica, ainda que destronada, não é eliminada, mas ao contrário é
aperfeiçoada com os recursos da nova mentalidade (Lógica Fuzzi,
equações não lineares, etc), porém já não ostentando a condição de
guia seguro, mas tão somente de ferramenta.

Esta é o que é chamada, muitas vezes pejorativamente (e muitas vezes
merecidamente pejorativamente) de mentalidade Pós-Moderna.
Infelizmente nos debates sobre cada tipo de razão os debatedores
assumem posições de defesa irrestrita de uma ou de outra forma, sem
ver que cada qual produz certos malefícios e certos benefícios,
derivados de sua lógica e indissociáveis dela. Não se considera,
também, que em nossa época já não podemos abraçar a crença na Razão
Calculista, ainda que nostalgicamente gostando das certezas que
propiciava, e que estamos irremediavelmente às voltas com essa Razão
Pós-Moderna, com todos os problemas que apresenta.

Grosso modo, as razões que negam a calculabilidade, quer por
desconhecê-la (Razão Prudente), quer por nela não mais acreditarem
(Razão Pós-Moderna) estão sujeitas à contaminação mítica (entendendo
a Razão Mítica como um ramo que nos parece extravagante da Razão
Prudente, mas que teve, em um passado remoto, utilidade social como
continente da experiência social). Quando tudo passa a ser “um jogo
excitante de hipóteses e refutações”(Prigogine), isto é, um jogo de
linguagem movediço, necessariamente a excelência do discurso assumirá
papel relevante no estabelecimento das hipóteses prevalentes, ainda
que muitas vezes tais hipóteses sejam pouco mais do que um jogo de
linguagem (vejam a idéia de Autopoiesis do Maturana e do Varela, por
exemplo, que é interessantíssima, utilíssima para outros raciocínios,
mas foge consideravelmente de uma hipótese biológica palpável). Um
outro problema é a incapacidade de planejar inerente ao descrédito
com o cálculo. Tal coisa é especialmente grave no campo do
desenvolvimento social, que fica relegado a uma resultante das forças
de mercado (isto é: de um mecanismo complexo incalculável). O homem
deixa de acreditar que pode libertar-se das situações através de um
planejamento baseado em atos da razão, abdicando do comportamento
proativo pelo comportamento puramente reativo.

Por outro lado as Razões Calculistas carregam em si uma ilusão também
mítica que é poderem realmente calcular, que é poderem realmente
conhecer a natureza do universo. As conseqüências disso já citei
acima.

Será possível lidar com essas Medusas sem deixar-se petrificar por
nenhuma delas? Será possível o exercício constante da ética, que nos
permita planejar mesmo sem poder garantir que o planejamento
funcionará, porém sabendo que não fazê-lo é ainda mais grave (e, por
outro lado, sem querer que tal planejamento se cumpra a ferro e a
fogo)?. Como Adão voltamos à Árvore do Bem e do Mal, de onde nunca
podemos de fato nos afastar. Arriscaria dizer que a palavra mediadora
nesse contexto é Responsabilidade, entendendo-a como uma prudência de
sentido social, mas não apenas isso como também dever de agir.

Ivan de Almeida
31 de maio de 2002

Written by Ivan de Almeida

agosto 8, 2012 at 9:59 pm

Publicado em Ciência e Teoria

Uma conversa transcrita em partes – narrativa fotográfica, poesia, etc.

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Uma conversa transcrita em partes – narrativa fotográfica, poesia, etc.


Ivan de Almeida
agosto de 2009

Mensagem I

Narrativa.

Esta foi a primeira mensagem em resposta a um interessantíssimo questionamento sobre qual o significado que nas minhas postagens tinha a palavra Narrativa, quando conjugada na expressão Narrativa Fotográfica, em conversa ocorrida no fórum BrFoto.

O questionamento ocorreu dentro de um diálogo com o José Luis Silva, um colega de fórum, duplamente colega por fotografar e por pensar as questões da fotografia e outras tantas.
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Narrativa é uma conjugação de signos concatenada para transmitir uma mensagem qualquer, ou várias mensagens entrecruzadas.

Da narrativa, podemos observar os signos e a forma de concatená-los.

Quando falamos de literatura, estamos dando muito mais relevo à forma de concatenar do que aos signos, e prestamos muita atenção em como a concatenação ressignifica os signos (pois as palavras não têm, como geralmente se acredita, significados fixos, dicionarescos, mas sim contingenciados). Paradoxalmente, o signo não é cabal no que significa, apesar da palavra “signo” indicar isso.

Quando falamos de fotografia, normalmente prestamos mais atenção aos signos do que à concatenação.

No entanto, nos dois casos a narrativa possui os dois aspectos, mas na literatura conseguimos muito mais facilmente distinguir dois textos que tenham palavras parecidas pela forma de concatenação, enquanto na fotografia estamos ainda muito presos a responder “isto aqui é uma fotografia do quê?”.

Porém, se retirarmos esse obstáculo que é a representação -ou seja, a capacidade da câmera desenhar bem segundo as regras da perspectiva cônica- que nos hipnotiza, podemos olhar que cada desenho feito por ela na fotografia ocupa um lugar, possui uma iluminação, existe em um espaço igualmente narrado, enfim, está relacionado com outros tantos constituintes da fotografia, sendo esse relacionamento a concatenação relativa à fotografia.

Dado um determinado objeto, que não existe por decisão do fotógrafo, este objeto é enquadrado, é escolhida uma distância focal, há uma exposição, etc. Através dessas escolhas, o objeto não é tão somente transcrito, mas narrado, ou seja, é plasmado em um ambiente em que passa a viver na fotografia, e ao qual é concatenado, e cujo limite é perímetro do retângulo fotográfico, este desde sempre parte integrante da concatenação. E a mensagem emerge desse conjunto concatenado, não do objeto singular, mesmo quando por um artifício estouramos o fundo branco para só haver o objeto, pois aí, então, esse recorte absoluto é condição ambiental.

Quando observamos uma foto ela nos diz muito mais do que o rol dos signos nela presentes. Mesmo sobre os signos, ela pode nos transmitir idéias de novo, de velho, de decadente, de riqueza, de afeto, através de conjugações fotograficas -luz enquadramento, distancia focal, tamanhos relativos no retângulo fotográfico, etc.

Usando um exemplo do Roman Jakobson, quando mudamos uma frase da voz ativa para a passiva, o significado muda também, embora aparentemente os signos não tenham mudado. Assim, é diferente fazer uma fotografia que narre “O homem olha a casa” e uma fotografia que narre “A casa é olhada pelo homem”. São mensagens diferentes, e na fotografia, mesmo presentes os mesmos signos, eles devem ser concatenados de formas distintas. A concatenação é um dos aspectos mais visíveis da narrativa.

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O Jose Luis comentou minha mensagem acima, apresentando alguns comentários, parte deles abaixo em itálico, gerando essa respsta:

Mensagem II

A Interubjetividade como alicerce das mensagens poéticas.

Interessantes as questões. Mas penso que nasceram de minha explicação deficiente, ou melhor, de minha despreocupação em dar conta da palavra “mensagem”, que da forma respondida parece ter uma determinação fixada, enquanto para mim não é assim, não é assim que a uso. Mas a palavra presta-se a isso, e é natural ser lida assim.

Vou pegar dois ganchos de sua resposta:

“Que as palavras não têm significados fixos me parece bastante evidente – a poesia revela isso como ninguém. Não há vínculo de necessidade algum entre o cachimbo e a palavra “cachimbo”, assim como o contexto pode conferir a uma palavra um significado bastante distinto daquele que se encontra num dicionário. Tampouco é inequívoco o signo.”

e

Sei que sua fala diz mais respeito ao efetiva e objetivamente narrado, que às intenções (subjetivas [essa palavra, reconheço, causa-me ojeriza]) do narrador,

No primeiro trecho temos um gancho interessante. A Poesia é exatamente uma fala, uma narrativa onde a mensagem não pode ser decomposta nos constituintes. Porque a Poesia não coloca a mensagem nos constituintes, mas na capacidade de reverberar no ouvinte ou no leitor certa impressão que seria vaga, não fosse definida.

Seria vaga porque não positivada dicionarescamente. Mas é definida porque, para além da intenção do autor, posto a Poesia e qualquer outra obra ser sempre uma deriva e não uma navegação rigidamente determinada -embora uma deriva manejada e aproveitada- decanta-se de cada poema um paladar característico. Este paladar, se me permite certa liberdade descritiva, é uma nuvem de ecos.

Ecos do quê? Ecos de reminiscências do observador.

A Poesia é lida/ouvida não com os olhos ou com o ouvido somente, mas com a memória, e seu encanto é não reverberar nas memórias duras e cristalizadas dos signos de significado definido -tanto quanto possam sê-lo-, mas deslizar para regiões da memória onde as impressões não estão totalmente vertidas em palavras, em descrições sociais. Essa região da memória é ao mesmo tempo vaga e determinada. Essa região é chamada normalmente de subjetividade, e de certa forma é, por não ser objetiva, entendendo aqui a palavra objetiva não como correspondente ao Real, mas como um significado-atrator muito fortemente compartilhado socialmente, ou pregnante. Objetivo é o significado que partilhamos sem questionar. “Papai, me dá um sorvete?” E eu sei o que é o sorvete, e, no campo de minha comunicação, sorvete é tratado como significado objetivo.

Mas na Poesia, através da ressignificação que é seu mister, dissolvem-se os significados objetivos, dissolve-se a objetividade aparente -do senso comum- das palavras. Mas ainda assim porta uma mensagem.

Por que? Porque a Poesia, como qualquer outra forma de arte, existe na cultura. Porque a Poesia, como qualquer outra forma de arte, é feita por um homem para outro, e mesmo quando feita para si mesmo, é outro o mesmo que contempla, em relação ao que criou antes.

Então, ressignificando as palavras, a poesia vai reverberar naquelas impressões na memória que não receberam codificação dura. Aquelas impressões que são vagas, colagens de cheiros, de temperaturas, de luzes. As mesmas impressões provocadas pelas Madeleines com as quais o Proust começa sua narrativa.

As madeleines fizeram reverberar no narrador as lembranças de sua infância em Combrai, e é dessas impressões, das luzes projetadas pela manhã na parede do quarto de hotel em Balbec, das ínfimas pequenas coisas que não são ínfimas, mas que constituem nossa experiência da presença -a qual, contudo não sabemos nomear nem indicar normalmente.

Essa experiência é memória, mas que não é descrição, e é nessa experiência que se diz habitar o subjetivo.

Contudo, toda obra artística é feita por um homem para outro homem, então, toda obra artística é um comunicado. E assim, o comunicado não pode ser subjetivo.

Para algo ser comunicado é preciso haver no receptor similaridade de memórias. Sem essa similaridade a obra torna-se opaca. O poeta, mesmo sem declarar isso conscientemente, conta haver no leitor/ouvinte vivências que podem reverberar diante de sua poesia. E não lhe interessa fazer reverberar os significados duros, mas sim trazer à lembrança o gosto das madeleines, aquilo que está na memória mas não tem nome, que está fora do território do nome, que está em uma franja entre o verbal e o não-verbal, que é memória auditiva, táctil, do paladar, olfativa, afetiva, emocional.

Mas se tais memórias fossem puramente subjetivas, isto é, exclusivas do sujeito, seria frustrada a tentativa do poeta. A Poesia só funciona por haver entre os indivíduos similaridade nessas memórias inomeadas. Quando o poeta as põe para reverberar, ele não está fazendo algo impossível, que seria comunicar a outro memórias únicas e só suas -então legitimamente subjetivas-, mas sim fazendo reverberar memórias dessa franja que nasce das vivências humanas em um mundo humano. E que, até certo grau, são produzidas similarmente nos indivíduos.

Sentir frio. Sentir frio e depois aquecer-se junto ao fogo. Sentir fome. Sentir fome e depois saciá-la com alimento. Molhar-se em uma chuva fria. Sentir o sol abrasador na pele. Sentir o sol macio de uma tarde. Impressões.

Não podem ser completamente chamadas à lembrança pela via direta, pela palavra do dicionário, mas podem ser chamadas à lembrança por climas verbais, por transportes produzidos pela oitiva ou pela leitura de um texto poético.

Medo. Eu sei o que é, já senti. Mas ao ler a palavra medo não volto a senti-lo. Contudo, posso ser levado a senti-lo pela obra artística. A obra artística não me dirá “Sinta medo”. Mas produzirá em mim uma revivescência desse sentir. Poderia, já aqui dizer que se assim for, abusando dos trocadilhos, “o medo é a mensagem”.

Deixando de lado a unicidade da existência, a confusão entre Ser e Presença, pois desde sempre estamos falando de algo determinado, e se partíssemos daí nada poderia ser sequer examinado -e aqui a finalidade é examinar-, podemos redefinir essa coisa chamada de subjetividade dando a ela outro nome, o de intersubjetividade, como sugere o Gaston Bachelard. Sendo intersubjetividade esse estoque de impressões que não são positivadas, mas que guardam relação de similaridade entre os homens de uma cultura (e todos somos dentro da Cultura) e mesmo a podemos supor produzida pelo mero intercurso entre o animal homem e ambiente (frio, calor, peso, fome, etc).

A dinâmica de fazer reverberar essas memórias, essas impressões, constitui o Modo Poético, aqui entendido como um modo que vai além da Poesia e está em todo produto artístico.

Mensagem, dentro do que quis dizer com esta palavra na resposta anterior, é também esse reverberar intersubjetivo.

E, assim como na Poesia, a Fotografia possui igual poder de fazer reverberar.

Um amigo lá na serra disse-me há pouco tempo que o grande truque é a estética dissimular-se a tal ponto de não parecer haver estética. A estética fotográfica é ferramenta para esse jogo, para a indicação da mensagem ao observador, assim como a estética da escrita no seu território. Narrar é conjugar isso.

Written by Ivan de Almeida

julho 31, 2012 at 1:12 pm

O QUE REPRESENTA A ARTE NA VIDA HUMANA?

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O QUE REPRESENTA A ARTE NA VIDA HUMANA?

Chile, Valparaiso, 2012

Chile, Valparaiso, 2012


Parte 1
Junqueira, Ivan de Almeida, abril de 2006, republicado em 26 de junho de 2012

Esta é uma pergunta fundamental, e fundamental por implicar em pensar dois assuntos relativamente pouco compreendidos da vida humana. Um desses assuntos é a razão da existência de atividades que à primeira vista são inúteis para a sobrevivência. A arte é sem dúvida uma delas. Um vaso de cerâmica sem decoração alguma continua capaz de reter água, de conter sementes ou óleos. Mas a sociedade menos rica, mais intimamente sujeita aos caprichos da Natureza, não deixa de ornar seus vasos, de ornamentar suas construções e roupas. Por que?

A segunda questão é quanto à fonte do poder da arte nos mobilizar. De onde ela tira tal poder, uma vez que não nos alimenta, não nos veste nem abriga.

É claro estarem interligadas as duas questões. Se conseguirmos saber porque a arte nos atinge, saberemos qual sua função. Em reverso, se sabemos sua função, saberemos por que nos atinge. Contudo isso ainda não esgotará a questão, pois teremos logo de mapear a dinâmica desta mobilização psíquica que a arte provoca.

O Trabalho, fazedor de homens.

Seria possível chamar as atividades animais para a sobrevivência de trabalho? Esta é uma questão interessantíssima. É preciso estabelecer de forma mais ou menos arbitrária, por certo, uma linha envoltória que separa o trabalho do não trabalho. Essa linha será convencional. De um lado da fronteira dela já encontraremos práticas que serão trabalho sob certo ponto de vista e não serão por outro. Do outro lado também encontraremos atividades que não serão trabalho mas que estaremos considerando como tal.

Em um dia de verão, fico perto de um pé de jabuticaba colhendo os frutos frescos e estourando sua casca com os dentes deixando a polpa doce e perfumada deliciar meu paladar. Ao mesmo tempo há nutrição e prazer.

Estou com sede. Andando ao sol no campo vejo um regato de águas frescas e com as mãos em concha bebo. A água fresca me delicia.

Começou a chover. Estou no campo andando e perto há um rancho velho, telhado pequeno sobre a terra nua. Corro para lá e me abrigo. Sinto alívio e satisfação enquanto olho as grossas gotas caírem.

Todas essas ações relacionam-se com a sobrevivência, mas nenhuma delas é trabalho. Ao comer jabuticaba no pé não se pode separar a ação útil, nutriz, do prazer com o gosto do fruto. Mas então quero levar para casa e comer amanhã (bem, jabuticaba depois de colhida perde o gosto rapidamente e torna-se insossa, mas vá lá, quero colher e levar para casa). Metodicamente, começo a colher, logo acabam os galhos mais baixos e tenho de buscá-las nos galhos altos. Colho e as coloco em uma cesta de palha. Vou comê-las mais tarde, mas pegá-las diligentemente e colocá-las na cesta é enfadonho. Amenizo isso comendo uma de vez em quando.

Mas comer frutos da árvore não é atividade humana. Macacos e esquilos comem frutos da árvore. Mas a colheita intentada é atividade humana, embora haja animais que também amealham frutos e sementes e os estocam.

Aí está um dos problemas dessa fronteira da linha separadora do trabalho do não-trabalho. Animais amealham sementes, isso é fato. Então seria correto dizer trabalharem? É preciso explorar um pouco mais essa questão…

Para tentarmos distinguir o amealhar de sementes por animais do trabalho é preciso observar características distintas dessas duas atividades e até mesmo separar o trabalho em gradações, parte dele quase ato animal, parte dele totalmente humano. Não se pode dizer haver no amealhar de sementes por um esquilo o sentido de previsão. As sementes não são amealhadas para servirem de estoque de alimentos. O ato de amealhar é distinto e separado da sua utilidade. O esquilo amealha porque isso o recompensa na própria ocasião da coleta, e muitos animais coletam objetos sem serventia alimentícia, sugerindo que o ato de coletar é fonte de satisfação em si mesmo para essas espécies. Não há uma teleologia na coleta. Suas razões são momentâneas, não visam uma utilidade futura embora sirvam a essa utilidade futura. Se depois o esquilo comerá as sementes, isso é um segundo momento não relacionado com o primeiro em termos de planejamento. São atos com motivações diversas mas que constituem juntos um todo funcional.

Mas o homem coleta sabendo a utilidade da coleta e somente essa utilidade o faz coletar. O futuro motiva o presente no ato humano, mas não no ato animal. O coletar humano implica em um planejamento, em uma proposital criação de uma segunda natureza criada por sua coleta e pela organização dos elementos da natureza, e essa segunda natureza é parte de sua humanidade. Essa segunda natureza em seu desenvolvimento histórico.

Assim para mim o primeiro significado da palavra trabalho é a ação que visa garantir uma determinada situação futura, ação realizada com propósitos teleológicos e não meramente uma utilidade futura fruto de uma ação cuja motivação é a pulsão do presente. Há no trabalho uma necessária separação entre a satisfação futura- e a ação –presente. Por outro lado essa mediação básica vai se elaborando historicamente parri-passu com a complexificação da sociedade. A divisão social do trabalho torna ainda mais abstrata a ligação entre o esforço e a sustentação do organismo. Que por exemplo traduz um texto não o comerá depois. Será entregue a alguém que pagará, e o dinheiro guardado para comprar alimentos em outra hora, alimentos cujo esforço de produção em nada se relaciona com a dita tradução. Nesse processo a doçura da jabuticaba cada vez se afasta mais da ação útil.

Apenas para situar, é possível dizer que há um tipo de atividade animal -e o homem sem a cultura é um animal como qualquer outro- onde não há trabalho e não há arte. Há uma atividade útil ao organismo que mistura esforço e prazer, esforço e prazer emaranhados de forma que não se pode dizer onde um termina e começa o outro. Obviamente essa minha afirmação não deve ser levada a sério como tendo havido mesmo tal momento ou não, pois as origens são incognoscíveis e eu não seria imprudente de dizer conhecê-las, mas é uma descrição razoável para o exame do nosso assunto.

Nesse ponto de vista, é exatamente a capacidade de antever uma situação e prepara-se para ela de forma planejada que cria o trabalho e junto com ele o animal se torna homem.

Written by Ivan de Almeida

junho 27, 2012 at 1:44 am

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Tarzã, Mogly e nós, outros bichos.

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Tarzã, Mogly e nós, outros bichos.

30 de janeiro de 2006

Há uma eterna luta. De um lado os que acreditam ser sua humanidade algo especialíssimo, uma diferença essencial em relação à natureza, algo gravado em seus genes por Deus ou pela Evolução, mas, seja por um ou por outro, algo claramente distinto do restante da carne viva da animalidade. De outro lado estão aqueles que, independentemente de crerem em Deus ou não, dizem ser a humanidade uma simples emergência da cultura, e a própria cultura uma emergência das adaptações e ajustes comuns a todas as espécies gregárias e mesmo as não gregárias.

Sabe-se hoje que grupos de macacos mantêm uma espécie de dialeto primata particular distinto do de outros grupos. Que o canto dos passarinhos de uma mesma espécie varia de região para região denotando serem, tanto o canto quanto a comunicação símia, algo em parte determinado pela circunstância. Em que parte? É completamente impossível dizer, pois desde cedo os símios vivem com outros símios e assim aprendem a comunicar-se com suas mães símias, com seus companheiros de brincadeiras símias, etc. Temos, em relação aos símios, uma prerrogativa que não temos em relação aos humanos. Podemos isolar um deles de sua espécie desde o nascimento e educá-lo, e até, como experimentos demonstram, ensinar uma linguagem de símbolos para conosco se comunicarem. Ao final, símio adulto, não saberá comunicar-se com seus iguais mas somente com os homens. O que é “esse”? É um símio? É uma mentalidade semi-humana? São perguntas difíceis de serem respondidas, implicam em definições prévias difíceis, implicam em saber em que sentido a pergunta é feita.

Com os seres humanos o experimento fica impossível, pois não podemos isolar um homem de sua cultura, de sua mãe, dos outros homens desde o nascimento, pela crueldade contida em tal ação. Assim, todo homem é contaminado pela cultura desde a hora em que nasce, pois quem dele cuida é uma mãe sujeita às regras de uma cultura, sujeita ao seu tempo e à sua maneira, praticante dos gestos que essa cultura pratica. Porém os poucos casos de crianças raptadas por macacas que perderam seus filhotes e crescendo entre os símios foram recuperadas muitos anos depois (são chamadas de Crianças-Lobo), mostram não restar nelas nenhuma das características da razão ou do espírito e nem mesmo os movimentos corporais que normalmente associamos ao homem como a postura bípede ereta. São homens biológicos, mas não são mentalmente homens e não recuperam sua humanidade jamais.

Mas, falar isso, falar que o homem é um animal que é ensinado a ser homem pelo restante da humanidade é mais uma vez retirar o homem do centro da criação. Toda vez que falamos isso, que alguém fala isso, recebe uma saraivada de agressões, pois a vontade de ser especial é imensa, mesmo nas existências mais banais.

Nesta semana sofri uma dessas reações insanas ao falar sobre métodos de composição plástica em fotografia a uma lista fotográfica. De repente, aparece uma enorme quantidade de gente advogando a “inspiração”, que nada mais é que essa ilusão de especialidade divina, de alma-sopro-de-Deus, de razão inata (vício de pensamento que o Kant corrobora e razão pela qual tanta gente o adora, afinal ele os consola de sua natureza primata). De início estranhei a virulência da reação, mas depois, agora, entendo que no fundo só era a mesma coisa de sempre: gente defendendo ser filho de Adão. Afinal, é sempre mais cômodo julgar-se detentor da inspiração artística por dom ou natureza do que buscar aperfeiçoar-se por esforço.

Written by Ivan de Almeida

junho 25, 2012 at 10:13 pm

Publicado em Ciência e Teoria

A CABECEIRA DE UMA MESA REDONDA

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A CABECEIRA DE UMA MESA REDONDA

Em 2003 aconteceu o XVII Congresso de Arquitetos. O artigo seguinte foi encaminhado ao dito congresso, sendo publicado nos anais do mesmo e tendo uma sessão nele para sua discussão.

Resolvi publicá-lo aqui pois os anais de um congresso são obscuros e porque trata-se de um artigo no qual diversos pressupostos epistemológicos estão elencados, dando conta bastante razoavelmente do que penso sobre o assunto. Evidentemente a questão está orientada para a Arquitetura no texto, mas o raciocínio serve para o geral, não se resume à Arquitetura.

P1090262

A CABECEIRA DE UMA MESA REDONDA.
A Inserção da Pesquisa em Arquitetura na Ordem Científica Contemporânea.

Sessão 2: CULTURA E IDEOLOGIA, b.

2003

Palavras-Chaves: Epistemologia, Pesquisa em Arquitetura, Teoria da Arquitetura.

Ivan de Almeida Junqueira, M.Sc.
jq2@ig.com.br

INTRODUÇÃO:

Diversos autores, como Morin e Prigogine, nos falam de uma nova ciência ou de uma Nova Aliança, na qual, dissolvidos os limites entre observação e observador, naquela admite-se definitivamente inserida a conformação cognitiva desse último, não apenas sua psicologia específica como também o sistema de conceitos que partilha com a sociedade e que serão aplicados à descrição que fizer de um fenômeno e à formulação teórica a ele correspondente. Essa assunção, a chama Edgard Morin, circularidade (Morin, 1997), e traz consigo o fim da ilusão do observador onipresente, impessoal, objetivo, a quem a natureza confessava sua natureza sob a inquisição do método experimental.

Thomas Kuhn, o epistemólogo, nos oferece a visão de acontecerem nos diversos campos científicos periódicas trocas de paradigma, sendo uma das definições que apresenta para este termo as formulações teóricas que “serviram, por algum tempo, para definir implicitamente os problemas e os métodos legítimos de um campo de pesquisa para as gerações posteriores de praticantes da ciência.” (Kuhn, 2001, 30). Porém, em um nível mais profundo, é cabível falar da existência de um paradigma comum a todo o corpo científico, entendendo isso como um núcleo de presunções e preceitos que definem, conforme sua aplicabilidade ou não a um dado campo fenomenal, o que é cientifizável, o que não é.

A ciência tradicional, ou clássica, supunha que conhecer algo era fragmentá-lo, reduzi-lo ao mais simples, e que o simples era a fonte de toda a causalidade. Supunha, também, que ao lidar com esse simples era possível isolá-lo do restante do universo, isolamento esse que era o fulcro da experimentação e o amalgama da teoria.  Prigogine nos diz sobre essas premissas:

“Quais são os pressupostos da ciência clássica de que pensamos que a ciência se afastou atualmente? Pode considerar-se  que se articulam em torno de uma convicção central: a de que o microscópico é simples, regido por leis matemáticas simples. O que significa que a função da ciência é a de ultrapassar as aparências complexas e reduzir a diversidade dos processos naturais a um conjunto de efeitos dessas leis. Essa concepção dos objetivos científicos é acompanhada por uma discriminação entre o que…. se supõe corresponder à realidade “objetiva” e o que é considerado ilusório, ligado à nossa própria subjetividade.” (Prigogine e Stengers, 1997, 7)

No âmbito dessa ciência, a pesquisa em arquitetura restava tributária das fontes principais, pesquisa menor e aplicada, um dos últimos dos elos de uma cadeia causal que se originava no microscópico, e cuja máxima aproximação em relação à ciência consistia no empréstimo das formulações desenvolvidas nos campos verdadeiramente científicos. Tal situação decorreu da grave incompatibilidade entre o que é a arquitetura e a maneira utilizada pela ciência clássica para investigar a realidade, incompatibilidade que vai além dos métodos, originando-se nos seus pressupostos. A razão disso é não ser a arquitetura decomponível em fragmentos menores e mais simples, sendo um fenômeno que não se pode explicar por nenhuma de suas partes constitutivas. Na grande mesa da ciência clássica não havia um lugar para a arquitetura mesma, para a investigação de sua especificidade, pois essa especificidade somente surgia de uma conjunção de fatores bastante complexa, impossível de simplificar sem que a dita especificidade desaparecesse. A arquitetura, ao ser decomposta em técnica de construção, em organização espacial das utilidades ou em estética, a tríade clássica de Vitrúvio, desaparecia, escorria entre os dedos de quem a estivesse decompondo, e o que restava já não possuía seu traço identificador.

O resultado disso foi o desenvolvimento de pesquisas que consistiam em aplicar outros saberes à arquitetura: física aplicada, psicologia aplicada, técnicas de organização aplicadas, cada uma das quais poderia contribuir para a prática da arquitetura, mas nunca para seu entendimento. Restava algo que permanecia oculto, tácito, porquanto não fosse técnica de construção, não fosse organização espacial, não fosse pura estética (e mesmo essa última estava incluída no “ilusório, ligado à nossa própria subjetividade”).

Porém o que se diz é estar acontecendo uma metamorfose na ciência. O sentido dessa metamorfose, também se diz, é incluir o que é complexo, mas, mais do que isso, é descrer na possibilidade de simplificação. Isso parece mudar radicalmente a noção do que é e do que não é cientifizável, os objetivos da ciência e os seus métodos. Isso parece mudar a situação de exílio na qual antes se encontrava a pesquisa em arquitetura. Então é para nós do maior interesse procurar saber qual o lugar que nos caberá nessa nova ordem que surge, isto é, se agora há para nós arquitetos que pensamos a arquitetura há um lugar na mesa da ciência, e qual é ele.

A ANTIGA ORDEM DOS COMENSAIS.

Conforme as honras que se queira fazer à mesa, são dispostos os assentos.  Na mesa da ciência clássica, na qual não havia assento para a pesquisa arquitetura propriamente dita, os campos científicos ordenavam-se segundo o quanto cada um estivesse próximo da causa última, a suposta simplicidade microscópica. À cabeceira, presidindo tudo, encontrava-se a Física.

A razão disso é que a ciência dita clássica fundou-se sobre a astronomia –início do método experimental no qual as verificações confirmam as hipóteses-, e sobre a Física, e essa última veio fornecer as bases para a primeira, que foi reduzida em certo momento a uma ciência-exemplo, confirmadora das leis do movimento, que, contudo, tinham sua aplicabilidade maior no mundo sublunar.

Para os antigos gregos, a palavra Physis, normalmente traduzida como natureza, “abrangia tanto a acepção de “fonte originária” quanto a de “processo de desenvolvimento “” (Pessanha, 1978, XXI). Além disso, tal natureza para os gregos incluía a meteorologia, a biologia, entre outras disciplinas que hoje constituem ramos científicos distintos. Porém, e isso é significativo da idéia de natureza incluída na ciência clássica, apenas um dos ramos científicos mereceu ser chamado de Física, por ser admitido que nos fenômenos de seu campo é que se investigava a natureza da Natureza.

Qual era, então, essa natureza da Natureza? Se observarmos bem, veremos que nada do que constituísse o mundo aparente fazia parte dela, mas, ao contrário, sua realidade estava em atributos abstratos da matéria, como a massa, a inércia, o tempo, o espaço, ou então no mundo atômico. Tal natureza constituía-se de um pequeno número de leis, que se aplicadas ao menor, ao microscópico, desdobrariam por sua conjugação toda a multiplicidade das aparências.

Poder-se-ia falar da existência de uma cadeia causal, isto é de uma causalidade que emergia do simples para o complexo, cuja tradução esquemática seria algo que começaria nos átomos e seus componentes, e desses, das características de seus elétrons nas órbitas externas, se derivariam as possibilidades de combinação química, dessa se derivaria a biologia, a neurociência, dessas a psicologia e as ciências sociais como a antropologia e a sociologia. Tal causalidade apresenta-se como uma causalidade orientada, que poderia ser representada segundo o esquema abaixo:

Cada uma dessas instâncias remetia à instância imediatamente anterior sua causalidade última, verdadeira, e seguia as leis da instância anterior. Naturalmente o pensamento das ciências sociais não acompanhava esse credo, mas mesmo essas se submetiam ao modelo das ciências naturais, ou buscavam aproximar-se dele, tornando-se assim, “mais científicas”. No ápice dessa forma de pensar, diz Prigogine:

 “pôde ser mantida por alguns a ilusão de que a atração, posta em fórmulas pela lei da gravitação, permitia atribuir à natureza uma animação intrínseca, e depois de generalizada, explicaria a gênese de formas de atividade cada vez mais específicas e eletivas, até às interações que se constituem a sociedade humana” (Prigogine e Stengers, 1997, 39)

Evidentemente, não cabe aqui descrever a história da Física, a evolução dos seus problemas, as teorias que, ao acomodá-los, foram a distanciando aos poucos dos postulados estritamente legalistas iniciais. Para nós, para a finalidade deste trabalho, é suficiente esclarecer que entre o final do Século XIX e os meados do Século XX a Física transformou-se de tal forma que as teorias que constituíram seus novos paradigmas, e que ainda coexistem sem unidade teórica plena, já não cabiam no modelo anterior, que incluía um observador onipresente, um observador passivo, um método experimental que forçava a natureza a revelar-se. Naquela mesa onde a Física sentava-se à cabeceira, o outro extremo era ocupado por um ente virtual, por um espectro não totalmente enunciado, e esse espectro consistia no observador objetivo. Entretanto as duas principais teorias da Física contemporânea, a Relatividade e a Mecânica Quântica têm em comum o reconhecimento de que naquela mesa havia alguém na outra cabeceira, e que os atos desse alguém é que definiam a coisa observada e a situação a partir da qual se fazia a observação. Ouvimos então que:

“A idéia de que a descrição científica deve ser coerente com a definição dos meios teoricamente acessíveis a um observador que pertença a este mundo, e não a um ser totalmente independente das coações físicas… que contempla o mundo físico “do exterior”, constitui uma das idéias fundamentais da relatividade” (Prigogine e Stengers, 1997, 166)

“O fato de a relatividade fundar-se em uma coação que não é válida senão para observadores físicos, para seres que não podem estar senão em um único lugar de cada vez…. faz dessa disciplina uma física humana” (Prigogine e Stengers, 1997, 167)

Porém, além disso, a Mecânica Quântica ainda mais aprofunda  a definição do observador, pois assume que não apenas o universo somente pode ser observado de um ponto de vista específico, como que mesmo nesse ponto de vista ele não pode ser plenamente observado,  e que “toda descrição implica na escolha da operação de medida” (Prigogine e Stengers, 1997, 174), e que, “O físico não descobre uma verdade determinada…; ele deve escolher uma linguagem…., um conjunto de conceitos macroscópicos, em cujos termos será solicitado que o sistema responda”. (Prigogine e Stengers, 1997, 175).

Para nós, o importante de tais fatos é observar que o modelo das ciências naturais que durante três séculos imperou como a único modelo válido para a investigação plenamente científica restou, a partir dessas quebras de paradigmas dentro de sua ciência-mãe, irremediavelmente alterado. Se a própria Física tornara-se uma ciência humana, também ela deixara de poder ditar as causas primeiras. A idéia da causalidade clássica não mais pode ser utilizada. A idéia da cadeia causal que começava no átomo –ou na gravitação, dependendo da época-, e se estendia até a multiplicidade de atividades humanas, não mais podia subsistir quando o observador, humano, social, culturalmente determinado, era chamado ao palco e introduzido na observação.

CIRCULARIDADE, INTERAÇÃO, EMERGÊNCIA.

Para a situação resultante dessa dramática metamorfose científica já não podemos usar a metáfora da mesa retangular.  “O observador que observa, o espírito que pensa e concebe, são indissociáveis duma cultura” (Morin, 1997,15), e sendo assim, toda a cultura se introduz na estrutura do conhecimento científico, que já não pode ser mais pensado como conhecimento impessoal, ou de um “demônio que observaria todo o universo do exterior” . (Prigogine e Stengers, 1997, 167).  Vai-se com isso a ilusão da objetividade, vai-se a ilusão da causalidade calculável. Morin nos diz que “toda a realidade antropossocial depende, de certo modo (qual?), da ciência física, mas toda ciência física depende, de certo modo (qual?), da realidade antropossocial.” (Morin, 1997,15), e nos apresenta o seguinte esquema para representar essa dinâmica:

(Morin, 1997,15)

Este esquema recebe do Morin o nome de circularidade, e entende que todo esforço para elucidá-la deve preservá-la, pois:

“romper a circularidade e eliminar as antinomias é, precisamente, tornar a cair sob o império do princípio da disjunção/simplificação ao qual pretendemos escapar. Pelo contrário, conservar a circularidade é recusar a redução dum dado complexo a um princípio mutilador,… é recusar a simplificação abstrata.” (Morin, 1997,21)

Porém, como tal circularidade aparece como metodologia? Quis os objetos que se podem investigar a partir dela, e qual seu modelo de causalidade?

Para nós, interessados em promover uma investigação da arquitetura, o que ouvimos a respeito é profundamente encorajador. Ouvimos que a ciência, a partir de agora, “é capaz de compreender e descrever, pelo menos parcialmente, os processos complexos que constituem o mais familiar dos mundos, o mundo natural onde evoluem os seres vivos e suas sociedades.” . (Prigogine e Stengers, 1997, 25). Mas, o que significa isso? De que maneira esse mundo será compreendido?

A palavra complexidade traz em si implicada uma nova causalidade. Essa causalidade não é mais um desdobramento inflexível a partir de reduções à simplicidade, mas, ao contrário, é uma causalidade múltipla, oriunda de tudo ao mesmo tempo, pois nada pode ser isolado de fato. A ontologia dos entes, para essa causalidade, não é mais uma ontologia de desdobramentos sucessivos de uma lei única, de um princípio único, mas uma história de interações. “Não estamos mais no tempo em que os fenômenos imutáveis prendiam a atenção. Não são mais as situações estáveis e as permanências que nos interessam antes de tudo, mas as evoluções, as crises, as instabilidades.” . (Prigogine e Stengers, 1997, 5).

Possivelmente terão sido as formulações dos biólogos chilenos Humbero Maturana e Francisco Varela as que melhor deram conta dessa geração complexa. Sua descrição dos processos biológicos como uma história de interações entre um organismo e o meio ambiente, à qual chamam de autopoiese (Maturana e Varela, 1997), nos apresenta uma organização determinando-se através das interações com o meio ambiente circundante, e determinando-se através das deformações que sofre no domínio de suas possibilidades. O que é descrito é um processo, não um estado, uma história, não um momento. As interações “são ações recíprocas que modificam o comportamento ou a natureza dos elementos, corpos, objetos ou fenômenos que estão presentes ou se influenciam” (Morin, 1997,21).

A vida, porém, não se reduz aos componentes químicos que a compõem. Seu peculiar arranjo e sua organização estão além dos componentes, e não se podem explicar por eles. O todo já não é a soma das partes, mas é superior a ele (Morin, 1997,103). O todo é uma emergência daquele arranjo, e suas propriedades decorrem do arranjo. Morin nos diz que:

“Podemos chamar emergências às qualidades ou propriedades dum sistema que apresentam um carater de novidade em relação às qualidades ou propriedades dos componentes considerados isoladamente ou dispostos de maneira diferente em outro sistema.” (Morin, 1997,104).

Os sistemas, as organizações, as emergências estudadas, porém, também são recortes. De um lado temos o reconhecimento da impossibilidade do isolamento fenomenal, mas de outro temos a simétrica impossibilidade de promover uma investigação realmente holística. De um lado temos o reducionismo que destrói o objeto examinado quando o reduz aos seus componentes. De outro temos o perigo da irrelevância, isto é, da inclusão na análise de um fenômeno de mais elementos do que aqueles que podemos acompanhar em sua gênese interativa.

Como lidar com isso em nosso campo de estudos é o que examinaremos a seguir.

A ARQUITETURA COMO EMERGÊNCIA.

Para que se promova um recorte fenomenal pertinente, é necessário, em primeiro lugar, identificar a unidade se examinará. Unidade é o mínimo conjunto que guarda as características da coisa a ser estudada, ou, no dizer de Vigotski, “um produto de análise que, ao contrario dos elementos, conserva todas as propriedades básicas do todo, não podendo ser dividido sem que as perca” (Vigotski, 1998, 5). Essa questão é crucial para as análises fenomenais que considerem a complexidade, e é crucial, como já dito, tanto por evitar a inclusão de elementos turbadores da análise, quanto de impedi-la por excessiva decomposição.

Na verdade, o isolamento, princípio implícito do paradigma da ciência clássica, não deixa de ser parte da metodologia necessária à abordagem dos sistemas complexos. O que ocorre é que há uma declaração explícita do isolamento praticado, e não sua assunção implícita. Por outro lado, o significado da observação permanecerá atrelado ao recorte praticado, e isso aparece claramente no uso para matematização dos fenômenos humanos da Lógica Paraconsistente, Nebulosa ou Fuzzi.

A arquitetura constitui-se como uma tradição, isto é, sua história e sua natureza se confundem. Essa tradição delimita bastante bem nosso objeto de estudos como uma emergência de um processo de organização. Em seu aspecto mais evidente, a obra arquitetônica não se pode reduzir aos materiais que nela forma usados, mas tampouco pode se reduzir à utilidade atendida, ou às qualidades plásticas. Na delimitação tradicional do objeto arquitetônico e da prática da arquitetura já está desde sempre incluída essa complexidade, esse produzir-se por interações.

Seguindo a idéia de Vitruvio, a arquitetura é uma emergência das ações humanas destinadas a organizar o espaço para sua vida cultural –utilidade-, organização essa que produz uma materialidade mais ou menos durável –firmeza-, e que feita resulta em um contexto envoltório do seu usuário, e que se oferece à sua percepção –beleza. Na verdade o construído arquitetônico, sendo emergência desses fatores, o é exatamente porque possibilita a micro-emergência de um outro algo, totalmente distinto das qualidades do ambiente. Diz Morin que: “Na sociedade humana… os indivíduos desenvolvem aptidões para a linguagem, para o artesanato, para a arte, isto é, suas qualidades mais ricas emergem no seio do sistema social” (Morin, 1997,105). Chama isso de micro-emergências.  Para nós tal coisa se identificaria exatamente como o leque dos fenômenos relativos a habitar o ambiente artificial, isto é, o somatório dos efeitos que essa habitação produz no usuário.

A investigação de tal micro-emergência, a nós parece o cerne oculto do fenômeno arquitetura, seu aspecto sutil por detrás da materialidade e dos procedimentos de produção do objeto arquitetônico. Qualquer saber que se queira obter sobre a produção de arquitetura deve ser dirigido pela seguinte pergunta implícita: E como isso repercute sobre a experiência do usuário do ambiente construído? É dessa resposta que a pergunta haure seu lugar nesse jogo complexo, que ela se torna pertinente ou não, que ela se torna parte ou não do campo que queremos investigar. Não há arquitetura sem usuário, sem a experiência da habitação.

Tradicionalmente, porém, essa investigação era feita orientada por saberes científicos gerados em outros campos. Se, por exemplo, se investigava as relações entre um grupo de indivíduos e um espaço construído, tomava-se como certo que tais relações seriam derivadas de comportamentos biológicos complexificados (Sommer, 1973), isto é, que se poderia transpor para a habitação humana os comportamentos territoriais observados nos animais. Em outros aspectos da relação homem-ambiente se supunha que se poderia aplicar à habitação parâmetros de conforto ambiental gerados no estudo do clima, ainda que feita a ressalva: “É importante assinalar aqui a importância dos aspectos culturais e econômicos na determinação das formas arquitetônicas. Embora neste trabalho se dê ênfase á determinação climática, não podemos deixar de valorizar o significado de outros parâmetros.” (Mascaró, 1981, 72). Ainda assim, os parâmetros considerados trazem implícito um homem genérico, em um espaço também genérico, no qual o restante das condições de habitação pouco influenciam em sua experiência de conforto climático.

Esses dois exemplos, simplificações, mostram tão somente como se fazia o aporte de conhecimentos na compreensão da habitação do espaço construído, aporte esse que sempre constituía uma importação de um saber, importação de saber científico dos campos então considerados verdadeiramente científicos.

Porém nos parece que assim permanecíamos ignorando que a experiência da habitação do espaço construído tem o condão de rearranjar todos esses elementos, de colocá-los a seu serviço, de integrá-los de forma que não possam mais ser reduzidos aos comportamentos animais, ou à suportabilidade ou não de temperaturas, de condições atmosféricas ou lumínicas. Esse ignorar exprimia a utilização do modelo da ciência clássica, cujos objetos não incluem algo tão subjetivo como a instância da experiência. É exemplar a descrição da experiência de habitar e  de seus significados feita por Gaston Bachelard em sua Poética do Espaço. Nada ali é nada a não ser a própria experiência enunciada, embora tal enunciação necessite de uma modelagem matemática para tornar-se instrumento de prognóstico para além da subjetividade do projetista.

Para investigar a arquitetura, é da experiência de habitar que se hierarquizará cada variável. Cada aspecto da construção deve ser avaliado conforme seja experimentado pelos usuários, pelos indivíduos de uma cultura específica, e essa investigação será, talvez, a verdadeira investigação arquitetônica, no sentido de se remeter àquilo que dela emerge e que constitui seu sentido. Os resultados dessa investigação não serão universais –como de resto nenhum resultado da ciência poderá se dizer-, mas contextuais, não obstante tal contexto possa abranger toda uma cultura, toda uma época, toda a história.

CONCLUSÃO

Como vimos, os três primeiros séculos de desenvolvimento científico assumiram como paradigma oculto que o entendimento de um fenômeno era sua redução a elementos mais simples, dos quais derivava. Vimos que essa redução pressupunha que tais elementos simples fossem isoláveis, e ainda que aquilo que não se deixasse isolar não era coisa cientifizável. Durante todo esse tempo vimos que em relação à arquitetura a máxima aproximação científica possível era a incorporação em sua feitura de saberes oriundos de outros campos ditos verdadeiramente científicos, como a física (nos processos de construção ou no conforto ambiental), a biodinâmica (no cálculo das escadas), a psicologia comportamental (na busca da compreensão da divisão social do espaço construído).

A experiência de habitar, emergência da interação do espaço construído com seu usuário, não era claramente enunciada, por ser de natureza tão subjetiva e complexa que não se deixava partir ou reduzir a elementos simples.

Vimos que a ciência clássica já não mais sobrevive, senão como uma inércia ou como um hábito, pois seus pressupostos já não são admitidos sequer no seio do campo científico que a modelou, isto é, da Física, e que a inclusão do observador nela efetuada nos obriga e reformular a idéia de causalidade, de geração. Vimos que disso resulta uma circularidade, na qual a causa já não está isolada, mas provém de pelo menos dois pontos simultaneamente: da natureza e do observador.

Vimos que esse novo modelo torna examináveis fenômenos como a arquitetura, pois contempla processos de interação entre causas como os processos geradores das realidades complexas, e postula que nessa geração acontece do todo ser superior –no sentido de dotado de qualidades que não podem ser ditas meras emanações dos elementos que o compõem- às partes, e que isso é chamado de emergência. Vimos que essa nova ciência, ou Nova Aliança oferece a possibilidade de tratar e compreender “processos complexos que constituem o mais familiar dos mundos, o mundo natural onde evoluem os seres vivos e suas sociedades” (Prigogine e Stengers, 1997, 25).

Vimos ainda que o objeto arquitetônico em si já é uma emergência, um todo que não se pode decompor em partes no sentido de compreendê-lo a partir dela, e que o processo de geração do objeto arquitetônico é também um processo de interações.

Disso tudo, pudemos observar que essa geração de espaço habitável cria, por sua vez, uma micro-emergência, que para nós e da maior importância. Que essa micro-emergência é a experiência de habitar um espaço construído. Postulamos que o verdadeiro estudo da arquitetura é o estudo dessa experiência, e não dos princípios de organização, das técnicas de construção ou da aplicação de uma psicologia experimental genérica.

Essa mudança de orientação, essa mudança de modelo de causalidade, destrói definitivamente a mesa na qual sequer tínhamos assento. A circularidade constrói uma nova mesa, redonda, na qual as emergências complexas ocupam lugar de destaque. Nessa mesa as causas não se armam hierarquicamente, mas os diversos campos de estudo se aproximam e permutam saberes desenvolvidos sobre suas questões específicas, mas dos quais não são donos, contudo.

O reconhecimento de nosso problema específico de estudo nos permite sentar nesta mesa, e, ao centrarmos em nossa questão nossos esforços de investigação, ao tentarmos distinguir o que é lhe é próprio, o que somente emerge no habitar do ambiente artificial arquitetônico, faremos de nosso lugar a cabeceira, pois a cabeceira de uma mesa redonda é onde sentamos quando reconhecemos na capacidade de lidar com nossas questões específicas a fonte maior de validação de nossas formulações.

BIBLIOGRAFIA

Bachelard, G. A Poética do Espaço, in Os Pensadores XXXVIII. São Paulo. Abril Cultural, 1974.
Kuhn, T. A Estrutura das Revoluções Científicas, 6a Ed. São Paulo, SP. Ediitora Perspectiva S.A., 2001.
Maturana, H, e Varela, F. DE MÁQUINAS E SERES VIVOS – Autopoiese – a Organização do Vivo, 3a Ed. Porto Alegre. Artes Médicas, 1997.
Mascaró, L. Luz, Clima e Arquitetura. São Paulo. Edições Técnicas, 1981.
Morin, E. O Método I – A natureza da Natureza, 3a Ed. Lisboa. Publicações Europa-América, 1997.
Pessanha, J. C. Introdução Geral in Os Pensadores I, Pré-Socráticos, São Paulo. Abril Cultural, 1978.
Prigogine, Y e Stengers, I. A Nova Aliança. Brasília. Editora Universidade de Brasília, 1977.
Sommer, R. Espaço Pessoal: as bases comportamentais de projetos e planejamentos. São Paulo. EPU, Editora da Universidade de São Paulo, 1973.
Vigotski, L. S. Pensamento e Linguagem. São Paulo. Martins Fontes, 1998.

Written by Ivan de Almeida

junho 23, 2012 at 7:21 pm

Publicado em Ciência e Teoria

No fundo, tudo é crença.

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Ivan de Almeida
abril de 2009
Há diferentes níveis de crença.

Existe uma crença chamada de “mágica”. Esta crença está geralmente ligada às religiões, é uma espécie de correlação entre efeito e causa sem sentido prático. “Orei para conseguir tal e qual”, por exemplo. Ou “simpatias” para se conseguir alguma coisa, ou coisas semelhantes.

Há uma outra crença, menos evidente como tal, que está baseada em um acordo social, acordo este que dá significado a ela. Dois mais dois igual a 4, por exemplo. Ou “Os corpos caem”. São afirmativas que são aceitas como verdadeiras, sendo, contudo, meramente úteis em contextos delimitados (sociais). Porque, dois mais dois oceanos são… Sei lá, podem ser qualquer coisa, é água prá cacete, mas quatro não são, pois extrapolam a idéia de quatro. Ou seja, há um acordo prévio sobre a somabilidade das coisas e sobre que tipo de coisas são somáveis, e há um acordp prévio sobre a igualdade das coisas para permitir a soma. Duas bananas maduras somadas a duas bananas pisadas e podres são quatro bananas? É uma boa questão. Para a finalidade prática não. E duas bananas nanicas somadas a duas bananas-figo? Então, há, subjacente na proposição de soma, outras proposições antes acolhidas que exprimem um acordo social sobre o espectro do que é somável, do que é igual, do que não é.

No caso das bananas, se a utilidade for comê-las dividindo-se as bananas entre quatro pessoas, duas bananas-nanicas não poderão ser somadas a duas bananas-figo. O que se vê é a racionalidade da soma depender da utilidade que será dada ao resultado.

O conceito de igualdade mesmo, ele é um conceito sem equivalência no mundo da experiência. No mundo das coisas não há duas perfeitamente iguais. O conceito de igualdade é um decantado de milhões de experiências humanas e sociais de equivalência, mas equivalência é um conceito palpável, enquanto igualdade não. Igualdade é somente um ser de razão, só existe na razão.

No entanto, o conceito de igualdade está no alicerce de milhões de verificações.

Assim, em cada coisa que julgamos verificada, se formos examinar há um tecido-suporte de conceitos, alguns materializáveis, outros não, e nós acordamos que eles são suficientemente “densos”, para neles apoioarmos nossas verificações. Isso não apresenta nenhum problema, é um comportamento coerente com a utilidade, mas pode tornar-se coisa problemática se começarmos a acreditar que as verificações são de fato verificações em sentido amplo e não meros acordos de significado.

Há ainda uma terceira espécie de crença que é baseada na experiência pessoal não muito bem protocolizada nos signos sociamente compartilháveis. Certas adversões, gostos, certas maneiras de sentir. Ou experiências contemplativas, ou de raiva, ou de paixão, de amor, etc. Essas experiências produzem um estado o organismo e esse estado cria uma memória-valor. Quando vale amar? É um valor não obtenível de comparações sociais. E cria uma memória desse valor mesmo quando o sentimento não está produzindo o estado alterado na pessoa. Isso quer dizer, que o vivente pode sentir amor por alguém, mas pode também, enquanto está distraído pensando em outra coisa, saber que sente amor. Porque não necessariamente sabe que sente amor sentindo amor no momento mesmo em que este saber se torna positivo para a consciência.

O homem deseja intensamente dispor de solo firme para suas convicções, mas não há tal solo. Não há em parte alguma, ele sempre vive e viverá em uma nuvem na qual certas partes lhe parecerão muito definidas em certa época, mas quase fantasmagóricas em outras. Coisas sólidas, muito sólidas como as Leis da Física Newtoniana se mostrarão depois meramente boas fontes de prognósticos no mundo sublunar.

O que importa, ao fim e ao cabo, é o quanto as idéias, ou saberes, podem ser boas fontes de prognósticos, o quanto eles permitem agir tendo noção das conseqüências. Esta é a única verdade dos saberes, e sempre será uma verdade limitada, pois a melhor regra sempre será apenas uma regra contingenciada. E, consideradas psicologicamente, importa o quanto as convicções são importantes na produção da felicidade.

O resto é dar à linguagem um fundo metafísico. Achar que se pode saber algo ou achar que nada se pode saber, ou achar que há um método para saber que é em si melhor, tudo isso é discussão dentro da linguagem, limitada pela linguagem, que só parece fazer sentido pela lógica da linguagem.

Talvez nossa maior crença, aquela que fundamenta todas as outras, seja na linguagem.

Written by Ivan de Almeida

janeiro 10, 2012 at 8:10 pm

Publicado em Ciência e Teoria

O Mito da Liberdade – 1

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Ivan de Almeida
11 de dezembro de 2005

Se lhe disser que liberdade depende de disciplina, o que você me diria? Mais ainda, que depende de uma dose brutal de disciplina? Bem, então lhe digo isso mesmo, pois me parece verdade.

A questão, no caso, é não poder existir liberdade sem potência. Não há liberdade impotente, a impotência é em si um limite. Por outro lado, a capacidade de fazer algo, a potência, não provém do acaso ou do impulso indisciplinado. Para certo tipo de coisa é preciso capacidade, capacidade de persistência, capacidades econômicas, capacidade de conhecimento e prática, etc, e essas capacidades são adquiridas e mantidas por disciplina.

Isso parece bastante paradoxal. Para ser livre, isto é, no sentido prático, para ter capacidade escolher, é preciso em alto grau sacrificar liberdades anteriores para adquirir capacidade de escolher de fato (a potência), e depois da escolha novamente é necessário sacrificar liberdades indiferenciadas para manter essa escolha.

Provavelmente uma parte significativa da angústia do indivíduo nas sociedades atuais provém de ser permanentemente convidado a exercer uma liberdade que já foi já consumida por opções anteriores, ou sequer criada anteriormente sob a forma de potência, mas que é insinuada como a ele pertencente. A palavra liberdade, no âmbito da propaganda, é revestida de um grau de potência ilimitado, como se isso fosse possível, omitida sua natureza de escolha, de renúncia necessária das outras possibilidades. Então o indivíduo permanece tonto e prisioneiro das opções contraditórias, isso gerando uma espécie de sofrimento individual de natureza social, um sofrimento induzido e capaz de mantê-lo como um insaciável consumidor de opções e incapaz, no mais das vezes, de desenvolver uma só, aprofundar uma só, ou seja, de escolher realmente como quer viver. Naturalmente, tais opções são produtos, a liberdade é oferecida sob a forma de produtos e como um consumo ainda quando esse consumo é de amor, de sexo, etc, pois nesses casos necessariamente mediado pelo consumo de produtos ou de um conjunto de produtos ou serviços favorecedores.

A compreensão da natureza paradoxal da liberdade provavelmente é a única forma de tê-la de fato, isso significando assumir não ter uma potência de ação ilimitada, mas sim ter clareza das escolhas feitas, escolhas iniciais e escolhas de manutenção (pois se manter em uma determinada situação é também uma escolha). É preciso, pois, uma disciplina de liberdade, ou se cai prisioneiro de um canto de sereia, cheio de promessas mas cuja resultante é manter o indivíduo imobilizado, escravo dos desejos a ele impartidos que o transformam em títere, não em homem livre.

Written by Ivan de Almeida

janeiro 7, 2012 at 11:27 am

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